Lilith: De Arquétipo à Deusa

Uma Análise de Sua Criação, Evolução e Significado Pela Psicologia Analítica 


"Lilith", John Collier (1850–1934)

Atkinson Art Gallery Collection



Introdução

 Neste texto, mergulharemos em uma análise da figura de Lilith, explorando como ela passou de um mito arquetípico antigo para se tornar uma deusa reverenciada nos cultos modernos. Com embasamento em fontes acadêmicas e livros importantes, vamos investigar a jornada de Lilith, desde sua origem até sua transformação ao longo dos séculos.

Falaremos da criação e da metamorfose de Lilith como arquétipo, investigando como suas características e simbolismos foram moldados e reinterpretados ao longo do tempo. Além disso, exploraremos a relação intrigante entre Lilith e o conceito de Sombra, conforme desenvolvido pelo psiquiatra Carl Gustav Jung em sua Psicologia Analítica.

À medida que falamos da origem de Lilith, também examinaremos sua ascensão como uma divindade adorada nos cultos contemporâneos. Sendo assim, o seguinte texto é uma interpretação do conceito de Lilith através da Psicologia Analítica, não sendo mencionada como Arquétipo nas obras de Jung. Vamos utilizar desta interpretação para fortalecimento dessa teoria. O texto em questão não é, e não pode ser, interpretado como uma verdade absoluta e nem como destaque nas rodas acadêmicas de psicologia.

Antes de mais nada, faço uma breve ressalva sobre a importância de se dar crédito às escritas originais, e aqui não seria diferente: Você encontrará ao fim do texto fontes variadas que foram usadas como base para a criação desse projeto, bem como os créditos de uso de imagens usadas durante o texto.

Mitos Arquetípicos:

Um Mito Arquetípico é uma narrativa simbólica que reflete aspectos universais e atemporais da psique humana. Esses mitos são considerados expressões primordiais do inconsciente coletivo e são compartilhados por diferentes culturas ao redor do mundo.

Os mitos arquetípicos são caracterizados por sua relevância transpessoal, abordando temas essenciais da condição humana e socio-cultural, como a busca pelo sentido da vida, a jornada heroica, a luta entre as polaridades, o nascimento, a morte e a transformação. Eles transcendem as experiências individuais e fornecem um meio de compreender e transmitir conhecimentos fundamentais sobre a existência humana.

Esses mitos são compostos por símbolos e imagens que são compartilhados em diferentes culturas, revelando aspectos universais da psique humana. Eles são enraizados nos arquétipos, que são estruturas psíquicas inatas que influenciam nosso comportamento, pensamentos e emoções. Os arquétipos representam padrões universais de energias e motivam nossas experiências e percepções.

Origem de Lilith:

A origem do nome de Lilith tem sido objeto de estudo e especulação ao longo dos anos, com várias teorias levantadas para explicar sua etimologia. Embora as conjecturas mais frequentes apontem para a possível conexão com os nomes "Lilitu", "Lilu" e "Ardat Lil" nas tradições mesopotâmicas, é importante considerar outras possibilidades e ampliar a discussão sobre a origem do nome dessa figura mitológica.

Uma das alternativas propostas é que o nome Lilith possa ter raízes na língua acadiana, uma das línguas faladas na Mesopotâmia antiga. De acordo com essa teoria, Lilith poderia ser derivado do termo "līlītu", que significa "espírito noturno" ou "espírito da noite" em acadiano. Essa conexão linguística sugere uma associação inicial entre Lilith e a esfera da escuridão e da noite, ressaltando sua relação com a escuridão e a sensualidade.

Em textos hebraicos antigos, Lilith também é referida como "Lailah" ou "Laylah", que significa "noite" em hebraico. Além disso, em alguns textos cabalísticos, ela é chamada de "Satrina", que é uma versão hebraica do nome grego "Sátrias", que significa "mulher adversária".

Além disso, é interessante considerar outros nomes e personagens que podem estar relacionados a Lilith em diferentes tradições mitológicas e religiosas. Por exemplo, na tradição hebraica, Lilith é frequentemente associada a outros nomes, como "Adamah" e "Naamah". Adamah é mencionada no Talmude como uma figura feminina criada junto com Adão, antes de Eva. No folclore judaico, Adamah é retratada como uma parceira igualitária para Adão, mas acaba se rebelando contra ele e se tornando uma figura demoníaca. Já Naamah é mencionada na tradição cabalística como uma das esposas de Caim, e algumas interpretações a conectam a Lilith como uma linhagem de mulheres demoníacas.

Essas associações e nomes alternativos evidenciam a complexidade e a multiplicidade de interpretações em torno da figura de Lilith. A própria natureza de Lilith como uma deusa ou demônio variou ao longo do tempo e em diferentes culturas, contribuindo para a diversidade de perspectivas e abordagens acadêmicas sobre sua origem e significado.

Lilith como Arquétipo na Psicologia Analítica:

"Lady Lilith", Dante Gabriel Rossett e Henry Treffry Dunn (1867)
The Metropolitan Museum.of Art

Os arquétipos, na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, são padrões universais e simbólicos presentes no inconsciente coletivo. Eles representam imagens e temas arquetípicos que ressoam profundamente na psique humana e são compartilhados por diferentes culturas ao longo do tempo. Esses arquétipos são formas primordiais e influenciam nosso comportamento, emoções e experiências.

No contexto da relação entre Lilith e os arquétipos junguianos, podemos identificar dois arquétipos relevantes. O primeiro é o arquétipo da Sombra, que representa os aspectos reprimidos e negados da psique. Aqui, Lilith personifica esses aspectos sombrios, como a independência, o poder feminino e a sexualidade feminina que foram historicamente marginalizados e temidos.

O segundo arquétipo é o Feminino Transcendente, mesmo que não seja um conceito amplamente utilizado, que simboliza a busca pela individualidade, liberdade e autenticidade feminina. Lilith desafia as estruturas patriarcais e os papéis tradicionais de gênero, inspirando as mulheres a se conectarem com sua força interior e a reivindicarem sua autonomia. No entanto, Lilith está claramente e amplamente conectada ao conceito da Anima.

Essa análise dos arquétipos nos permite compreender as complexidades psicológicas e simbólicas de Lilith. Ela representa tanto os aspectos sombrios reprimidos quanto o potencial de empoderamento feminino e autenticidade. Ao explorar esses arquétipos, podemos obter uma compreensão mais profunda dos desafios e potenciais enfrentados pelas mulheres e pela sociedade em geral.

A Sombra e Lilith:

A relação entre Lilith e o conceito de sombra é essencial para compreender sua natureza como arquétipo. A concepção de "Sombra" na psicologia analítica de Carl Gustav Jung é um dos conceitos fundamentais para compreender a natureza do inconsciente pessoal. A Sombra refere-se à parte obscurecida e reprimida da psique humana, composta por conteúdos emocionais, desejos, impulsos e características que são considerados inaceitáveis ou indesejáveis pela consciência. Segundo Jung, a Sombra é formada por elementos reprimidos do Ego, representando uma espécie de "lado obscuro" da personalidade, que tende a ser negado ou ignorado. Esses aspectos da Sombra podem incluir traços indesejáveis, como raiva, inveja, medo, impulsividade e comportamentos imorais. No entanto, é importante ressaltar que a Sombra também pode abrigar qualidades positivas não desenvolvidas, como criatividade, força e intuição, que foram relegadas ao inconsciente. Lidar com a Sombra é um processo essencial para o desenvolvimento e a integração psicológica. Jung enfatizava a importância de reconhecer, aceitar e integrar os aspectos sombrios da personalidade, a fim de alcançar uma maior totalidade e individuação. Isso implica em trazer à consciência os conteúdos inconscientes da Sombra, explorando-os com honestidade e coragem.

Em suma, a Sombra, segundo a visão de Carl Gustav Jung, representa os aspectos reprimidos, negados e indesejados da personalidade humana. Lidar com a Sombra é um processo necessário para a individuação e o crescimento psicológico. Isso envolve o reconhecimento e a integração dos conteúdos sombrios, através da autorreflexão, da expressão criativa e do suporte terapêutico. Ao confrontar a Sombra, o indivíduo pode alcançar uma maior totalidade e uma vida mais autêntica. Lilith personifica, então, a sombra feminina, desafiando os padrões tradicionais de feminilidade e expressando a parte "não domesticada" e instintiva da psique feminina. Ela incorpora o lado sombrio e selvagem que muitas vezes é negado ou reprimido na sociedade.

Anima, Animus e Lilith:

"Fausto e Lilith", por Richard Westall, 1831.
Jack Kilgore & Co.

A Anima é o aspecto feminino da psique masculina, simbolizando a sensibilidade, a intuição e as qualidades emocionais reprimidas. Por meio do desenvolvimento da Anima, o homem pode acessar uma maior compreensão de si mesmo, equilibrando as polaridades masculinas e femininas em sua psique.

O Animus, por sua vez, é o aspecto masculino presente na psique feminina, representando a virilidade, a assertividade e a ação. O desenvolvimento do Animus permite que a mulher se liberte das restrições impostas pela sociedade e explore seu potencial individual, encontrando um equilíbrio saudável entre os aspectos masculinos e femininos.

Lilith se relaciona com a psique masculina ao estimular a integração da Anima, permitindo que o homem acesse sua sensibilidade emocional e desenvolva uma conexão mais profunda com sua natureza interior. Na psique feminina, Lilith desafia os padrões tradicionais de feminilidade, incentivando a mulher a explorar seu poder pessoal e a manifestar sua individualidade, fortalecendo a relação com seu Animus.

A Lua e Lilith:

A relação psicológica da mulher com a lua tem sido explorada por várias autoras, incluindo Clarissa Pinkola Estés e M. Esther Harding. De acordo com suas perspectivas, a conexão entre a mulher e a lua está associada a aspectos arquetípicos do feminino e à dimensão emocional e intuitiva.

Clarissa Pinkola Estés, em seu livro "Mulheres que Correm com os Lobos", discute a ideia de que a lua simboliza a natureza cíclica da mulher, refletindo suas fases e transformações. A lua cheia representa a plenitude e a expressão completa do feminino, enquanto a lua nova simboliza o potencial criativo e as possibilidades de renovação. Nesse contexto, Lilith pode ser relacionada à energia lunar e à expressão selvagem e instintiva da feminilidade.

M. Esther Harding, em "Os Mistérios da Mulher", aborda a lua como um símbolo do inconsciente feminino, representando a intuição, a fertilidade e a conexão com o mundo interior. Lilith, por sua vez, pode ser vista como uma personificação desses aspectos sombrios e instintivos da psique feminina, desafiando as normas sociais e representando a liberdade e a independência.

Ambas as autoras destacam a importância de reconhecer e honrar a ligação ancestral entre a mulher e a lua, valorizando sua intuição, ciclos naturais e poder criativo. Lilith, como uma figura mitológica que personifica força e autonomia feminina, pode ser entendida como um símbolo dessa ligação profunda entre a mulher e a lua, convidando à exploração e ao empoderamento da identidade feminina.


A Transformação de Lilith ao Longo do Tempo:

Lilith sofreu transformações significativas ao longo dos séculos, adaptando-se a diferentes culturas e tradições. Como vimos, nas fontes antigas, Lilith não era considerada uma deusa e não estava associada à fertilidade, mas sua figura evoluiu nas tradições judaicas, onde foi retratada como uma figura demoníaca e associada ao desejo sexual feminino. Essa evolução é evidente na literatura rabínica medieval, onde Lilith é descrita como uma mulher-demônio que sequestra crianças e seduz homens. No entanto, Lilith também ganhou novos significados e interpretações ao longo do tempo, sendo vista como um símbolo de independência e empoderamento feminino no movimento feminista do século XX.

A transformação de Lilith ao longo do tempo revela a natureza fluida dos mitos e símbolos na cultura humana. As diferentes interpretações e adaptações de Lilith mostram como figuras lendárias podem ser apropriadas por diferentes contextos e culturas, ganhando novos significados e sentidos. A figura de Lilith também destaca o papel dos mitos na construção das identidades culturais, bem como a importância das imagens arquetípicas na psique humana. A figura de Lilith continua a inspirar novas interpretações e representações, mostrando a importância da criatividade e da imaginação na construção da cultura humana.

A Ascensão de Lilith como Deusa nos Cultos Modernos

Embora Lilith não tenha sido considerada uma deusa nas tradições antigas, seu status divino ganhou força ao longo dos séculos. Influenciada por mitos e interpretações posteriores, Lilith passou a ser associada à independência, poder feminino e liberdade. Nos cultos modernos, ela é adorada como uma deusa primordial e transgressora. Diversificações abrangendo desde abordagens neo-pagãs até tradições ocultistas, tais cultos enfatizam a busca pela liberdade individual, o fortalecimento feminino e a conexão com o aspecto sombrio da psique.

De acordo com Jung, os arquétipos, incluindo os deuses, emergem do inconsciente coletivo por meio de processos de individuação, que envolvem a busca de integração e desenvolvimento pessoal. Os deuses podem ser vistos como projeções simbólicas das forças psíquicas internas, representando diferentes aspectos da psique humana, como o divino, o poder, a sabedoria, a criação, entre outros. A criação dos deuses, então, pode ser entendida como uma manifestação simbólica da necessidade humana de dar forma e significado a essas forças psíquicas primordiais, buscando compreender e lidar com a complexidade e os mistérios da existência.

Conclusão

A transformação de Lilith em arquétipo e posteriormente em uma deusa venerada nos cultos modernos é um fenômeno que reflete a capacidade dos próprios arquétipos de evoluir e se adaptar às necessidades e crenças das pessoas ao longo do tempo. Através da interpretação e culto contemporâneos, Lilith se tornou um símbolo poderoso de empoderamento feminino, liberdade individual e conexão com a energia sombria da psique. A natureza pluralista dos cultos modernos a Lilith permite uma ampla gama de perspectivas e práticas, enriquecendo sua relevância no contexto contemporâneo, e, até mesmo, tecnológico. A compreensão de Lilith como deusa nos cultos atuais é uma construção simbólica baseada em interpretações individuais e coletivas, demonstrando a influência duradoura e a ressonância emocional dessa figura na psique humana das nossas e de outras culturas.


- Sávio Costa Adon

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Fontes:

  1. Livros:

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  1. Artigos Acadêmicos:


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  • Reijnierse, I. "Selling the Third Wave: Lilith's Legend and Commodified Feminism in Chilling Adventures of Sabrina" (Bachelor's thesis, Utrecht University). Fev. 2021.

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