O "Relevo de Burney" - A Lilith Que Nunca Foi

"The Burney Relief " ou "The Queen of the Night" (1792-1759 AEC). 
 The British Museum.

Inspirado por diferentes tipos de dúvidas e de informações incorretas encontradas tanto na internet quanto em alguns livros, decidi retornar ao Blog com um assunto tão "polêmico" que poderia gerar um "conflito" entre diferentes vertentes das espiritualidades pagãs e estudiosos, que conhecemos e desconhecemos. 

Neste texto, utilizarei bibliografias que conheço e confio, e que vocês encontrarão lá no final, mas acima de tudo, utilizarei uma fonte específica que me inspirou e que me trouxe a uma luz necessária que a tanto tempo eu procurava enxergar. 

Steffy Von Scott é um estudiosos acadêmico, um pagão militante e presidente da Pagan Federation da Escócia, e um amigo que eu tenho a estima. Engenhosamente e recentemente, ele teve a coragem de lançar um livro que, além de necessário, pôde causar certo desconforto, interesse e curiosidade apenas pelo título: "From Ishtar to Eostre: Reframing the Near Eastern Origins of an Anglo-Saxon Goddess". Claramente o livro não é nenhuma pesquisa arqueológica que COMPROVA a origem de Ostara/Eostre como sendo do culto de Inanna/Ishtar ou da fenícia Astarte.

Sendo assim, Steffy deu-me o presente de utilizar o último capítulo de seu livro como maior base para este texto que procurarei ao máximo respeitar, bem como as outras referencias de outros livros, sites e de textos antigos contendo orações, nomes e menções necessárias para este trabalho.

A opção em escrever este trabalho já vem de muito tempo, anos, talvez, já que a tão iconográfica imagem da placa conhecida como "Dama da Noite" vem sendo associada por muitos religiosos, esotéricos, escritores e até mesmo acadêmicos como sendo Lilith, pondo-a ainda como "deusa antes de Eva".


Origem do Relevo de Burney

É conhecido como “Relevo de Burney” porque foi comprado pelo negociante de antiguidades de Londres, Sidney Burney, depois que o Museu Britânico recusou a oferta de compra em 1935. O relevo foi apresentado ao público pela primeira vez com uma reprodução de página inteira no The Illustrated London News em 1936.

O Relevo de Burney é um artefato mesopotâmico que data do período neoassírio (século VII AEC). Ele foi descoberto em 1930 por Leonard Woolley durante escavações arqueológicas na antiga cidade de Nínive, no atual Iraque. O relevo é feito de argila e mede cerca de 48 cm de altura por 38 cm de largura.

Identificação Errada do Relevo como Lilith

Inicialmente, o Relevo de Burney foi identificado erroneamente como uma representação da figura mitológica Lilith. Essa identificação foi proposta pelo assiriólogo Samuel Noah Kramer em 1932, com base na presença de corujas na cena retratada no relevo. No entanto, essa interpretação foi posteriormente contestada por outros estudiosos. Uma análise mais detalhada dos símbolos presentes no Relevo de Burney sugere que a figura retratada pode ser uma representação da deusa Ishtar. A figura usa um chapéu com chifres e asas, que são símbolos frequentemente associados à iconografia da Ishtar. Além disso, ela usa um colar e segura um bastão e um anel, que são símbolos também associados a Ishtar em outras representações artísticas.

Lilith 

"Lilith", John Collier (1850–1934)
 Atkinson Art Gallery Collection

Lilith é uma figura demoníaca feminina originária da mitologia babilônica, cuja presença tem sido objeto de estudo e interpretação por muitos anos. A primeira identificação de Lilith como um demônio resultou da tradução do tablet sumério fragmentário por Gadd. O dicionário assírio de Chicago identifica Lilitu ou Lilu (masculino) como um demônio feminino e cita vários exemplos em textos rituais.

Lilith é frequentemente associada a diferentes nomes e descrições em textos antigos. Por exemplo, em um encantamento babilônico chamado Utukki Limnuti, que tem como objetivo bloquear a entrada do inimigo na casa de alguém, Lilith é mencionada como "a ladra lila, ou lilitu ou serva da lila". Essas criaturas parecem ter sido sem rosto, já que nenhuma característica física é explicitamente citada no texto ritual. Além desses espíritos malignos, havia também o Essebu, um pássaro de mau presságio.

Outros textos rituais que mencionam Lilith incluem o encantamento babilônico Maqlû, que descreve Lilith como uma criatura que se alimenta de bebês e o encantamento assírio Atraḫasīs, que descreve Lilith como uma criatura que habita as árvores e ataca os homens. Em um texto ritual acadiano, Lilith é descrita como uma criatura que se alimenta de homens e mulheres.

Além disso, Lilith é identificada como um demônio feminino na Bíblia. Na tradução da Bíblia em inglês, a palavra hebraica "lilith" é traduzida como "night-monster" em Isaía 34:14. A tradição judaica posterior identifica Lilith como a primeira esposa de Adão, que se recusou a ser submissa a ele e foi expulsa do Jardim do Éden.

Em resumo, Lilith é um demônio feminino da mitologia babilônica que tem sido mencionado em vários textos rituais antigos. Embora haja muitas interpretações diferentes sobre a figura de Lilith, sua presença em vários textos rituais antigos sugere que ela era uma figura importante na mitologia babilônica e que sua influência se estendia além das fronteiras da Babilônia.

Recentemente, Lilith tem sido vista por alguns como uma deusa moderna e feminista. Sua história de recusa em ser submissa a Adão e sua expulsão do Jardim do Éden tem sido interpretada por alguns como um símbolo de empoderamento feminino e resistência à opressão patriarcal.

Inanna-Ishtar

Inanna é uma deusa da mitologia suméria, associada ao amor, beleza, sexo, desejo, fertilidade, guerra, justiça e poder político. Ela era uma das divindades mais importantes e amplamente veneradas na antiga Mesopotâmia, com templos dedicados a ela em várias cidades-estado. De acordo com a Lista de Templos Canônicos, que data da segunda metade do período Kassita, pelo menos setenta e nove templos em várias partes da Mesopotâmia foram dedicados a Inanna ou suas várias manifestações.

Inanna é frequentemente associada à deusa semítica Ishtar, que era adorada pelos acadianos, assírios e babilônios. Embora as duas deusas compartilhem muitas características e atributos, elas também têm diferenças importantes. Inanna é uma deusa suméria, enquanto Ishtar é uma deusa semítica. Além disso, enquanto Inanna é geralmente associada ao planeta Vênus, Ishtar é associada ao planeta Vênus e também às estrelas.

A importância de Inanna na antiguidade pode ser vista em sua presença em muitos mitos e lendas sumérias. Ela também tinha um grande número de epítetos e nomes alternativos, o que reflete sua ampla adoração e influência. Além disso, a iconografia de Inanna foi influente e pode ser vista em representações de outras deusas em culturas posteriores.

Leia aqui sobre "A Violação de Inanna: Abuso Sexual na Mitologia Suméria".

Ereshkigal Irmã e Suprema

Representação de Ereshkigal sentada no seu trono no submundo. Feita por IA, por Sávio Costa.

Em 1980, Edith Porada propôs que a figura com asas penduradas no relevo poderia ser identificada como Ereshkigal, a rainha do mundo subterrâneo na mitologia mesopotâmica:

"Se a proveniência sugerida do Relevo de Burney em Nippur provar ser correta, a imponente figura demoníaca retratada nele pode ter que ser identificada com a governante feminina dos mortos ou com alguma outra figura importante do antigo panteão babilônico que foi ocasionalmente associado a morte."

Embora Porada não tenha fornecido evidências adicionais para apoiar sua teoria, uma análise publicada em 2002 por E. von der Osten-Sacken chegou à mesma conclusão.

Von der Osten-Sacken descreveu evidências para um culto fraco, mas ainda existente, para Ereshkigal e citou semelhanças entre a figura no Relevo de Burney e descrições da deusa em textos antigos. No entanto, a identidade da figura no relevo ainda é objeto de debate e não há consenso entre os estudiosos. A teoria de que a figura é Ereshkigal é baseada principalmente em interpretações simbólicas e não há evidências diretas para apoiá-la. Enquanto alguns estudiosos continuam a apoiar essa teoria, outros argumentam que a figura pode representar outras divindades ou ser uma representação abstrata do conceito de morte e renascimento na mitologia mesopotâmica.

Uma teoria, tanto de Osten-Sacken quanto de Porada, seria de que a imagem representaria Ereshkigal como obtendo os poderes de Inanna/Ishtar, principalmente o Anel e o Bastão, durante a jornada desta deusa pelos portões do submundo, reino de Ereshkigal. No entanto, o antigo texto da "Descida de Inanna ao Submundo" não menciona em nenhum momento que Ereshkigal tem acesso aos poderes de Inanna/Ishtar, os "me'", e sim que todos os poderes desta deusa são tomados durante as passagens pelos portões. A própria Rainha do Submundo se demonstra soberana por excelência, tendo o poder de governar em um lugar que ninguém tem permissão de entrar sem sua autorização, logo, não precisaria tomar de "assalto" os poderes de Inanna/Ishtar:

58-60: "Quando ela entrou no primeiro portão,
De sua cabeça foi retirada a shugurra, a coroa da estepe.
Inana perguntou:
'O que é isso?'
Neti, o fiel servidor e porteiro de Ereshkigal, responde:
'Calma, Inanna, os caminhos do submundo são perfeitos.
Eles não podem ser questionados!' "

Ereshkigal é ancestral, uma deusa que antecede o nascimento de Inanna/Ishtar.

Na crença mesopotâmica, criar uma imagem de alguém ou algo era chamar a atenção do sujeito. Pensava-se que as estátuas dos deuses abrigavam os próprios deuses, por exemplo, e acreditava-se que as imagens nos selos cilíndricos das pessoas tinham propriedades amuletos. Uma estátua ou imagem de Ereshkigal, então, teria direcionado a atenção da Rainha dos Mortos para o criador ou proprietário, e isso estava longe de ser desejável.

A Descida ao Mundo dos Mortos

A descida de Inanna/Ishtar ao mundo dos mortos é um mito antigo da Mesopotâmia que narra a jornada da deusa Inanna ao submundo com o propósito de confrontar sua "irmã", Ereshkigal, conhecida como a "Rainha dos Mortos". O poema acádio intitulado "Descida de Ishtar ao mundo dos mortos" foi preservado em duas tabuinhas de argila, escritas em cuneiforme, encontradas na biblioteca do rei assírio Assurbanípal (685-627 AEC).

A descida da deusa acarreta consequências de natureza dual. Por um lado, implica o fim da libido sexual, que obsta a humanidade e demais seres vivos de sucumbirem ao aniquilamento enquanto espécie. Por outro lado, dado que a descida é seguida por seu retorno, a vida prevalece e a separação absoluta entre os vivos e os mortos se relativiza por meio da instituição de festividades dedicadas a estes últimos. Assim, celebra-se a sucessão das gerações tanto no âmbito corpóreo quanto no da memória.

O mito é impregnado de significado e simbolismo. A descida de Inanna ao submundo pode ser interpretada como a jornada heroica da deusa para visitar e desafiar o poder de sua irmã recém viúva, Ereshkigal. A narrativa também pode ser compreendida como uma metáfora para o ciclo da vida e da morte, assim como para a renovação da natureza.
Além disso, o mito da Descida de Inanna/Ishtar ao mundo dos mortos revela camadas adicionais de interpretação. A jornada da deusa ao submundo pode ser vista como uma representação simbólica do ciclo anual das estações, no qual a descida corresponde ao período de inverno e a ressurreição marca a chegada da primavera e a renovação da natureza. Essa associação com as estações do ano também sugere uma conexão profunda entre a deusa e os ritmos cíclicos da vida.

Outra interpretação relevante é a compreensão do mito como uma metáfora da jornada espiritual da alma humana. A descida de Inanna/Ishtar ao mundo dos mortos representa a jornada da alma em busca de conhecimento e transformação, enfrentando obstáculos e desafios ao longo do caminho. Os sete portões pelos quais a deusa passa podem ser interpretados como estágios de iniciação espiritual, nos quais a alma é purificada e despojada de suas amarras mundanas, preparando-se para uma nova fase de crescimento e expansão.

Além das questões espirituais e cósmicas, o mito também traz reflexões sobre as relações entre os sexos e as hierarquias sociais na antiga Mesopotâmia. Inanna/Ishtar é retratada como uma figura poderosa e independente, mas sua jornada ao submundo a obriga a se submeter à autoridade de Ereshkigal. No entanto, sua ressurreição e retorno à vida são uma afirmação do poder feminino e da capacidade das mulheres de transcender as limitações impostas pela sociedade patriarcal.

A Subida ao Mundo do Vivos

Placa representando, possivelmente, Inanna/Ishtar alada, com mãos no peito e com pés de garra, Babilônia. Circa de 1750 AEC. (The British Museum)

A subida de Inanna do mundo dos mortos é descrita em vários textos antigos. Depois de ser morta por sua irmã Ereshkigal, Inanna é trazida de volta à vida pelos deuses Enki e Ninshubur. Eles criam dois seres, Kurgarra e Galaturra, que são enviados ao submundo para resgatar Inanna. Eles encontram Ereshkigal em trabalho de parto e oferecem ajuda. Em troca, Ereshkigal lhes dá o corpo de Inanna. Kurgarra e Galaturra então revivem Inanna com a “água da vida” e o “alimento da vida” .

No entanto, antes de Inanna poder deixar o submundo, os demônios do submundo exigem que alguém tome seu lugar. Inanna concorda em encontrar um substituto e é libertada. Quando ela retorna ao mundo dos vivos, ela encontra Dumuzi sentado em seu trono, vestido com roupas finas e sem mos7trar nenhum sinal de luto por sua morte. Inanna fica furiosa e ordena que os demônios do submundo levem Dumuzi como seu substituto .

Dumuzi tenta escapar, mas é capturado e levado para o mundo dos mortos. No entanto, sua irmã Gestinanna se oferece para ocupar seu lugar durante metade do ano, permitindo que Dumuzi retorne ao mundo dos vivos durante a outra metade do ano.


Inanna/Ishtar Com Asas no Céu

Placa, possivelmente, representando Ishtar/Inanna alada, em cima de caprinos, com posição semelhante ao do Relevo de Burney e com pés de aves. Antiga cidade de Larsa, Suméria. 2004-1595. (Museu do Louvre

De acordo com o livro "Inanna: Queen of Heaven and Earth - Her Stories and Hymns from Sumer" de Wolkstein e Kramer (1983), as asas de Inanna/Ishtar são frequentemente mencionadas na literatura mesopotâmica como um símbolo de sua divindade e poder. Em muitos textos, ela é descrita como "a senhora dos céus" ou "a rainha do firmamento", sugerindo que suas asas representam sua capacidade de voar pelos céus.

Além disso, as asas de Inanna/Ishtar também são associadas à proteção. Em um dos oráculos assírios dados ao rei Esarhaddon, suas asas são descritas como tendo qualidades protetoras: "Eu sou seu pai e mãe. Entre minhas asas eu te criei". Isso sugere que Inanna/Ishtar era vista como uma figura protetora para aqueles que a adoravam.

As asas de Inanna/Ishtar também estão relacionadas à sua habilidade em batalha. Em alguns textos, ela é descrita como "voando ao redor como uma andorinha" durante a luta. Isso sugere que suas asas não apenas representam seu poder divino, mas também sua agilidade e habilidade em combate.


Ishtar como Senhora dos Animais e Destruição

Placa de Ishtar em cima de um leão segurando um arco, Babilônia, circa de 1900-1601 AEC. (Museu Pergamon, Berlim) 
Além de sua associação com a subida do mundo dos mortos, Ishtar também é frequentemente retratada como a Senhora dos Animais na mitologia mesopotâmica. Essa associação é reflet
ida no Relevo de Burney, onde a figura segura um bastão e um anel, que são símbolos frequentemente associados à proteção dos animais. Essa interpretação é reforçada pelo fato de que a figura é retratada rodeada por animais, incluindo leões, corujas e cabras.

A expressão "Senhora dos Leões" é encorajada em um dos hinos dedicados a Inanna/Ishtar, chamado Inninmehusa ("Deusa dos Poderes Temíveis"), que é um poema épico da literatura suméria escrito pela sacerdotisa e considerada primeira autora conhecida do mundo, Enheduanna (2285-2250 AEC), Inanna é considerada uma deusa suprema e que tem diversos epítetos. Nesse hino, Inanna/Ishtar decide se vingar do deus das montanhas, Ebih, que não a recebe bem, a desrespeitando-a:

1-6: "Deusa dos temíveis poderes divinos, vestida de terror, montada nos grandes poderes divinos, Inanna, completada pela força da sagrada arma ankar, encharcada de sangue, avançando em grandes batalhas, com o escudo apoiado no chão (?), coberto de tempestade e inundação, grande senhora Inanna, sabendo bem como planejar conflitos, você destrói terras poderosas com flecha e força e domina terras".

7-9: "No céu e na terra você ruge como um leão e devasta o povo. Como um enorme touro selvagem, você triunfa sobre terras hostis. Como um leão temível, você pacifica os insubordinados e insubmissos com sua ousadia".

Já a ligação de Inanna/Ishtar com aves de rapina pode ser relacionada à morte e, mais uma vez, à caça, se encontra em outro hino de Enheduanna chamado "A Senhora de Grande Coração".

Entre as linhas 29-38 associa Inanna como sendo "um falcão que caça os deuses, Inana despedaça os espaçosos currais". E também:

109-114: Os grandes deuses beijaram a terra e se prostraram. A terra da alta montanha, a terra da cornalina e do lápis-lazúli, se curvou diante de você, mas Ebih não se curvou diante de você e não o saudou. Destruindo-o em sua raiva, como desejado, você o destruiu como uma tempestade. Senhora, preeminente pelo poder de An e Enlil, ... Sem você, nenhum destino é determinado, nenhum conselho inteligente é favorecido.

A Coruja no Mito de Elkunirsa

Astarte é a forma grega do nome cananeu Athart e do nome fenício Ashtart, derivado do acádio Asdartu, que se refere à deusa Ishtar. Ishtar, por sua vez, se desenvolveu a partir da deusa suméria Inanna. Embora Astarte e Ishtar tenham sido identificadas como a mesma deusa em algumas tradições, precisamos saber identificar a diferença e separá-las.

O Mito de Elkunirsa é um mito cananeu preservado pelos hititas. De acordo com esse mito, Astarte é uma deusa cananeia associada à fertilidade, ao amor e à guerra. Ela é frequentemente associada à pássaros na mitologia cananeia. Em um mito encontrado entre as tabuletas de Boghazkoy, Astarte se transforma em uma coruja para espionar o deus Elkunirsa (El) e sua esposa (Asherah) enquanto eles dormem juntos. Durante a transformação, Astarte se torna uma coruja noturna e voa sobre o deserto para encontrar o deus Baal Haddad.

Figura de terracota de Astarte com rosto de pássaro, Fenícia. Circa de 2000-1500 AEC. (Princeton Uni. Art Museum)

Além disso, há evidências arqueológicas que sugere que os antigos fenícios adoravam uma divindade chamada “Astarte-Ishtar”, que combinava elementos dessas duas deusas em uma única figura divina. As evidências arqueológicas incluem inscrições em monumentos e artefatos religiosos encontrados em sítios arqueológicos em regiões do Oriente Médio e Próximo.

A coruja é um animal que tem sido associado à morte e ao submundo em diversas culturas ao longo da história. De acordo com o artigo de Philip C. Schmitz, a coruja era frequentemente vista como um mensageiro ou guardião do submundo na Mesopotâmia antiga. Algumas tradições mesopotâmicas acreditavam que a coruja podia guiar as almas dos mortos para o além, enquanto outras a viam como um símbolo da morte e do mal presságio.

Essa associação da coruja com a morte também pode ser encontrada em outras culturas antigas, como na Grécia e no Egito. Na poesia árabe pré-islâmica, por exemplo, a coruja era frequentemente mencionada como um pássaro associado aos funerais e à vida após a morte.

Além disso, há evidências arqueológicas que sugerem que as corujas eram usadas em contextos funerários na antiguidade. Em algumas tumbas antigas no Egito e na Grécia, foram encontrados pés de corujas esculpidos em pedra ou metal. Esses pés podem ter sido usados como amuletos protetores ou símbolos de transição para o além.

Um exemplo desses pés de corujas foi encontrado em uma tumba micênica datada do século XV AEC em Pylos, na Grécia. Segundo Philip C. Schmitz, esses pés de corujas podem ter sido usados para proteger os mortos durante sua jornada para o submundo ou para simbolizar sua transformação em espíritos protetores após a morte.

O Anel e o Bastão


Placa de calcário descrevendo a restauração do Templo de Shamash que se encontra no topo, entronizado e segurando o Anel e o Bastão, 860-850 AEC, Sipar. (The British Museum)

O Anel e o Bastão são emblemas que representam a realeza e o poder real na mitologia mesopotâmica. Eles eram frequentemente associados aos deuses e deusas que concediam a realeza aos governantes humanos. O Anel simbolizava a autoridade real e era frequentemente usado como um selo para autenticar documentos oficiais. Já o Bastão representava o poder do governante sobre seu povo e era frequentemente usado como um símbolo de comando militar.

Os emblemas do Anel e do Bastão eram frequentemente associados a divindades como Inanna, Shamash, Marduk, Enlil e outros que tinham conexões com a realeza ou concediam a realeza aos governantes humanos. Acredita-se que esses emblemas tenham sido usados desde os tempos antigos até o período babilônico da história mesopotâmica.

Topo da placa do "Código de Hamurabi", representando o deus solar Shamash possivelmente ofertando o Anel e o Bastão para o rei Hamurabi. 1900-1902 AEC, Susa. (Museu do Louvre)

Embora não haja evidências diretas de que Inanna tenha sido associada ao Anel e ao Bastão, esses emblemas eram frequentemente usados para simbolizar a autoridade real e a justiça na época em que os mitos de Inanna foram escritos. Além disso, muitas das histórias envolvendo Inanna envolvem questões de justiça divina e equilíbrio cósmico.

A Máscara de Warka, a Dama de Uruk

"Máscara de Warka" ou "A Dama de Uruk". Aprox. 3000 AEC, Uruk. atual Warka no Iraque. Pelo Museu de Bagdá, disponibilizada por World History Encyclopedia.

A Máscara de Warka, também conhecida como Dama de Uruk ou Dama de Warka, é uma escultura datada de 3300 AEC, durante o período de Uruk, que corresponde ao último milênio do Calcolítico na região mesopotâmica. Essa notável obra da arte suméria foi esculpida durante a civilização suméria, nas margens dos rios Tigre e Eufrates.

Descoberta em 22 de fevereiro de 1939 pela expedição do Instituto Arqueológico Alemão liderada pelo Dr. A. Nöldeke, a Máscara de Warka foi encontrada no distrito Eanna, em Uruk, que recebeu esse nome em homenagem à deusa Inanna, cujos templos estavam localizados na região. A escultura de mármore retrata um rosto feminino e é considerada única por ser uma das primeiras representações precisas do rosto humano na história da arte. Diferentemente de tentativas anteriores, como a cabeça de Tell Brak, a Máscara de Warka demonstra um alto grau de precisão anatômica, evitando exageros nas proporções do nariz e das orelhas.

O rosto da "Dama da Noite", "Relevo de Burney". Pelo Museu Britânico.

Acredita-se que a Máscara de Warka seja uma representação da deusa Inanna, sua semelhança com o Relevo de Burney é absurdamente grande, tirando a presença da coroa no relevo, podemos notar a relação das imagens com a sobrancelha grossa e o formato do rosto. No entanto, podemos deduzir também que o rosto de ambas as figuras possam remeter à semelhança dos rostos femininos da época.

Em algum lugar entre 10 e 12 de abril de 2003, ela foi saqueada do Museu que se encontrava após a queda do regime de Saddam. Em setembro de 2003, foi recebida uma denúncia de um informante da polícia militar dos EUA, que dizia que estava em uma fazenda ao norte de Bagdá. Um ataque foi conduzido pelo exército dos EUA e encontrou a Máscara de Warka depois de cavar 15 cm na terra. Agora está em exibição no Museu do Iraque em Bagdá, Galeria Suméria. Ela remonta ao período Jemdet Nasr, 3000-2900 AEC.


(Re)colorindo a Placa.

Versão colorida e reconstruída por computador do Relevo feita através de pesquisas científicas do Museu Britânico.

 A análise científica dos pigmentos na placa “Relevo de Burney” revela o uso extensivo de ocre vermelho no corpo da figura feminina principal. É provável que o gesso tenha sido usado como pigmento branco em algumas áreas, embora a possibilidade de estar presente como resultado da eflorescência dos sais contidos na água subterrânea não possa ser firmemente excluída. As áreas escuras no fundo continham carbono em vez de betume, como anteriormente assumido. Isso é mais extenso na parte inferior da placa, enfatizando o submundo de onde a figura surgiu.

A aplicação sistemática de análises científicas de diferentes disciplinas (física, química, mineralogia, petrografia, geologia e biologia) ao estudo de pigmentos e tintas pré-históricas melhorou a maneira como a arte pré-histórica e as cores são analisadas e compreendidas hoje, permitindo a descoberta de múltiplos usos de diferentes matérias-primas e técnicas .

A técnica conhecida como “ranking light” é utilizada para revelar cores em peças que sofreram descoloração natural. Os pesquisadores analisam cada detalhe da obra com a ajuda de lâmpadas ultravioletas, que podem distinguir padrões de envelhecimento da superfície e de suas cores originais. Os pesquisadores conseguem descobrir a presença de diferentes pigmentos de cor em partes da estátua por meio dos padrões que se tornam visíveis.

Para reconstituir as cores originais, os pesquisadores utilizam infravermelho e espectroscopia de raios-X para entender do que são feitas as tintas e, assim, descobrir qual era sua aparência original. A espectroscopia se baseia no fato de que os átomos são exigentes no que diz respeito ao tipo de energia que vão absorver. Ao verificar quais larguras de onda são absorvidas, os cientistas podem determinar de que materiais a substância é feita.


Conclusão

Podemos dizer, após essas informações, que o Relevo de Burney é um artefato mesopotâmico importante que retrata uma figura feminina com vários símbolos associados à deusa Inanna. Embora tenha sido identificado erroneamente como Lilith no passado, uma análise mais detalhada sugere que a figura representa Inanna em sua subida do mundo dos mortos e como a Senhora dos Animais. A figura retratada no relevo carrega símbolos que são frequentemente associados à Inanna, como a coroa com chifres, asas, o colar, o bastão e o anel.

Von der Osten-Sacken descreveu evidências para um culto fraco, mas ainda existente, para Ereshkigal e citou semelhanças entre a figura no Relevo de Burney e descrições da deusa em textos antigos. No entanto, a identidade da figura no relevo ainda é objeto de debate e não há consenso entre os estudiosos. A teoria de que a figura é Ereshkigal é baseada principalmente em interpretações simbólicas e não há evidências diretas para apoiá-la. Enquanto alguns estudiosos continuam a apoiar essa teoria, outros argumentam que a figura pode representar outras divindades ou ser uma representação abstrata do conceito de morte e renascimento na mitologia mesopotâmica. Como anteriormente assumido, Lilith não é a figura retratada no Relevo de Burney. Lilith é uma figura demoníaca feminina originária da mitologia babilônica, cuja presença tem sido objeto de estudo e interpretação por muitos anos. Ela é frequentemente associada a diferentes nomes e descrições em textos antigos, e é mencionada em vários textos rituais. Devido a sua natureza demoníaca, Lilith não era adorada como uma divindade na antiga Mesopotâmia, mas sim temida e evitada. A aplicação sistemática de análises científicas de diferentes disciplinas ao estudo de pigmentos e tintas pré-históricas melhorou a maneira como a arte pré-histórica é compreendida e interpretada. A análise de pigmentos e tintas pode fornecer informações sobre a origem geográfica dos materiais, as técnicas de produção e as práticas culturais associadas à produção de artefatos. Além disso, a análise de pigmentos e tintas pode ajudar a identificar falsificações e restaurações em artefatos antigos. A análise de pigmentos e tintas no Relevo de Burney revelou que a figura foi pintada com uma mistura de hematita e gesso, que é consistente com as práticas de pintura da época. A análise também revelou que a figura foi originalmente pintada em várias cores, incluindo vermelho, azul e preto, mas a maioria das cores desbotou com o tempo. A análise de pigmentos e tintas é apenas uma das muitas ferramentas que os arqueólogos e historiadores usam para entender a arte e a cultura da antiga Mesopotâmia. Outras ferramentas incluem a análise de textos antigos, a escavação de sítios arqueológicos e a análise de artefatos e objetos antigos.

Essa pequena pesquisa pode ajudar a fomentar o ideal de que Lilith não é a figura presente no Relevo de Burney, intensifica a imagem de Lilith como uma "vilã" demoníaca durante o período sumério e babilônico, e não uma deusa portadora de todos os poderes, como é o caso de Inanna.

-Por Sávio Costa
(Plágio é crime, Lei nº 9.610/98.)

  1. BIBLIOGRAFIA:
    Autor Desconhecido (c. 1900-1600 AEC). A Descida de Inanna ("Inanna's Descent to the Netherworld").
    Albenda, P. (2005). The “Queen of the Night” Plaque: A Revisit. Journal of the American Oriental Society, 125(2), 171-190.
    Bertman, S. "Handbook to Life in Ancient Mesopotamia". Oxford University Press, 2005. Black, J. "Inana and Shu-kale-tuda: translation by Jeremy Black". Acessado em 6 de dezembro de 2022. Emrys, Wendilyn. "The Transformations of a Goddess: Lillake, Lamashtu, and Lilith." Master's thesis, University of British Columbia, 2018.
  2. Enheduanna (2285-2250 AEC). Inninmehusa ("Deusa dos Poderes Temíveis"). Koltuv, B. B. (1995). O Livro de Lilith: O Resgate do Lado Sombrio do Feminino Universal. São Paulo: Editora Cultrix.
  3. Jacoby, D. (2005). Lilith in Jewish Mysticism. In Jewish Women: A Comprehensive Historical Encyclopedia. Jewish Women's Archive.
  4. Patai, R. (1967). The Hebrew Goddess. New York: Ktav Publishing House. Leick, G. Mesopotamia: The Invention of the City. Penguin Books, 2003. Schmitz, Philip C. 2009. "The Owl in Phoenician Mortuary Practice." Journal of Ancient Near Eastern Religions 9 (1): 51-85.
  5. Scott, S. V. (2022). From Ishtar to Eostre: Reframing the Near Eastern Origins of an Anglo-Saxon Goddess. "The Burney Relief." The British Museum. Disponível em: https://www.britishmuseum.org/collection/object/W_1838-1203-4.
  6. "The Warka Mask." The Metropolitan Museum of Art. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/329208.
    von der Osten-Sacken, E. (2002). “Uberlegungen zur Gottin auf dem Burneyrelief”. Em: Sex and Gender in the Ancient Near East: Proceedings of the 47th Rencontre Assyriologique Internationale, Helsinki, July 2-6, 2001 (editado por S. Parpola e R. Whiting) (pp.479-487). Neo-Assyrian Corpus Project, Helsinki. Wolkstein, D. e Kramer, S. N. (1983). Inanna: Queen of Heaven and Earth: Her Stories and Hymns from Sumer. New York: Harper & Row.

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